Falta de equipamentos para perícia deixa investigações inacabadas
Há um ano, dona Maristela visita um túmulo vazio da filha
Publicado em 03/10/2011 07:59
Quando um perito que acabou de investigar um acidente de carro tenta ir embora, o automóvel não funciona. São muitos os problemas da perícia criminal no Brasil.
“Cinco anos encaixotado, daí ele funcionou dois meses; quebrou, e não consertaram até hoje, a gente não consegue fazer exames nele até hoje”, mostra a perita criminal Junilce Guidolin.
“Nós não temos em Mato Grosso do Sul uma máquina funcionando para fazer esse tipo de perícia”, explica o presidente da Associação de Magistrados do MS, Olivar Coneglian.
“Se continuar como está hoje, levaríamos cinco anos para acabarmos com todo esse estoque que está aí”, acrescenta a perita balística Jandira Bolda.
E com isso a população é quem sofre. Maristela Pacheco, mãe de uma vítima, pede: “Eu quero o resultado dos exames para enterrar minha filha”.
Durante um mês, o Fantástico investigou a realidade da polícia científica no Brasil. A polícia científica ou criminalística é formada pelos peritos, que são cientistas, técnicos e médicos legistas. Eles examinam as provas materiais de crimes e delitos como, por exemplo, bala disparada, droga apreendida e corpo de vítima de violência. O resultado do trabalho deles pode ser a diferença entre a condenação e a liberdade de um acusado.
O presidente da Associação Brasileira de Criminalística, Iremar Paulino, explica: “No meio jurídico, há um entendimento que a prova pericial é a rainha das provas.”
Há um ano, dona Maristela visita um túmulo vazio. Iara tinha 21 anos quando foi assassinada em 2010. A polícia prendeu o homem que confessou o crime e encontrou um corpo queimado que pode ser o da estudante. Mas faz um ano que os exames de DNA para identificação do cadáver estão sendo feitos pela perícia do Paraná. Até agora, nenhum resultado.
“Por que esse resultado está tão enrolado desse jeito?”, questiona dona Maristela. Os motivos são muitos. Neste e em outros casos, os peritos se queixam de acúmulo de serviço e de falta de material.
O perito criminal de Curitiba Antonio Carlos Lipinski mostra as condições de trabalho: “Isso é um computador meu, que eu montei, trouxe para cá para auxiliar, porque a gente estava com acúmulo de serviço e a dificuldade era a falta de equipamento. Para agilizar meu trabalho, montei essa máquina”.
“A gente fica até constrangido quando a gente chega no local a gente não tem sequer o pó para fazer impressão digital”, reclama o perito criminal de Minas Gerais, Esperidião Porto.
Os peritos se queixam também de trabalhar sozinhos, sem motorista ou auxiliar. Como conta João Ricardo Parreira da Associação dos Peritos Oficiais de Mato Grosso do Sul: “Às vezes, é uma área extensa, 20 hectares, 100 hectares. Como o perito vai fazer uma medição dessa área, encontrar essa área? Sozinho? E se a viatura der um problema, enguiçar?”
Você viu o carro do perito enguiçar no início da reportagem. Ao explicar por que a bateria arriou, ele expõe mais um problema da perícia no Brasil: falta de manutenção e de novo equipamentos para trabalhar: “É porque a gente não tem outro sistema de iluminação. Não tem nenhuma lanterna. A gente deixa o farol, porque a única forma de visualizar bem é com o farol da viatura”. Para fazer o carro pegar, só com a ajuda dos bombeiros e das testemunhas do acidente.
Para a Associação Brasileira de Criminalística, o Brasil tem poucos peritos. “Deveria haver um perito para cada cinco mil habitantes”, diz Iremar Paulino.
Segundo a associação, o país teria que ter 38 mil desses profissionais. Hoje, são cerca de 6,5 mil, ou um para cada 30 mil habitantes, quase seis vezes menos que o ideal.
Quando a perícia recolhe armas usadas em um crime, elas têm que ser testadas em estandes de tiro e também em equipamentos especiais, mas nem todo estado conta com essa estrutura.
Nos fundos de uma casa, encontramos no chão cartuchos de balas de diversos calibres, isso porque já faz quatro meses que o estande de tiros da criminalística de Bom Despacho funciona no local; se resume a dois tocos de madeira, uma garrafa de água e uma pilha de areia.
Quando faltam equipamentos básicos, investigações ficam prejudicadas. “Aqui a gente pode ver inquérito de 2009 que, por falta de uma simples máquina fotográfica, não se registrou a condição, a situação do local de crime”, explica o delegado de Santa Luzia (MG) Christiano Xavier.
Sem equipamentos, uma carga de droga apreendida não pode ser periciada. “O cromatógrafo, um aparelho utilizado para fazer pesquisa de drogas, de abuso, que a gente adquiriu há dez anos mais ou menos, ficou cinco anos encaixotado. A gente não consegue fazer exames nele até hoje”, explica a perita criminal Junilce Guidolin.
Assim, no processo contra o traficante não existe laudo, isto é, o resultado do exame provando cientificamente que o material é mesmo droga. E o acusado acaba solto. “Nós, como membros do Estado, temos vergonha de ter casos como esse”, diz Coneglian.
Equipamentos semelhantes foram comprados há um ano e até hoje não foram instalados. Enquanto isso, a Polícia Federal ajuda Mato Grosso do Sul no exame de drogas. A PF tem equipamentos de ponta em Brasília.
“Isso é uma peça do trem de pouso de um avião em que no momento do pouso houve uma fratura, e a questão é se essa fratura foi fadiga, ou o que aconteceu com essa peça”, mostra Sara Lenharo, perita da Polícia Federal. “Eu consigo provar que tem um defeito interno, por exemplo, na peça, sem ter que cortar. Se a polícia pode dar resposta, uma resposta técnica, robusta, rápida, você vai acabar com a impunidade em pouco tempo”.
Onde falta tecnologia avançada, também faltam materiais bem mais simples. “Falta impressora, falta cartucho para a impressora. Algumas vezes falta papel. E falta computador em quantidade suficiente para que o perito possa produzir o seu laudo na perícia”, conta Elcio Carvalho da Costa, da Associação dos Peritos do Estado do Rio de Janeiro. Com isso, atrasa tudo.
Em 2008, você viu no Fantástico a Operação Hércules, que desmontou uma quadrilha que traficava anabolizantes e medicamentos proibidos no Brasil. Só agora, quatro anos depois, o delegado Marcos Cipriano recebeu uma resposta da perícia. “Não foi possível fazer a análise. Não por culpa do perito, ou qualquer outra coisa, e sim por falta de recurso”, justifica.
A Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados visitou o Instituto de Criminalística e o IML do Rio e gravou um vídeo. Nas imagens, uma grande quantidade de drogas e material que ainda tem que ser periciados. Até o laboratório acaba virando depósito.
“Muitos materiais são colocados onde tem espaço, onde surge espaço, por conta do grande volume de trabalho e de material que entra”, mostra o perito criminal Alexandre Giovanelli.
O vídeo também mostra a chamada capela de fluxo, uma espécie de exaustor. Ela é importante para que o perito não respire os gases das análises químicas, o que é muito perigoso. “Só que, nesse caso, ela não está funcionando. E no interior não existe nem capela de fluxo”, acrescenta Giovanelli.
Em Curitiba, mais salas abarrotadas de provas esperando perícia. “Se continuar como está hoje, levaríamos cinco anos para acabarmos com todo esse estoque”, explica a perita balística Jandira Bolda.
Casos de grande repercussão mostram como o trabalho da policia cientifica é importante. Pelas marcas de pneu no chão, a perícia chegou à moto dos bandidos que mataram a juíza Patrícia Acioli, em Niterói. Já o assassinato da menina Isabella Nardoni, em São Paulo, não teve testemunhas. O pai e a madrasta de Isabella foram condenados porque os peritos conseguiram provar a autoria do crime.
“Pessoas mentem; provas, nunca”, ressalta o perito criminal José de Morais. Produtos químicos descobriram o sangue de Isabella no carro, no lençol, na rede de proteção. Os técnicos conseguiram até comprovar que a camiseta do pai de Isabella tinha marcas da tela que foi cortada. “A perícia no Brasil pode ser considerada antes do caso Nardoni e depois do caso Nardoni”, diz José de Morais.
São Paulo é um dos 17 estados que já se adaptaram a uma lei de 2009, que estabelece autonomia aos peritos. Quando não têm autonomia, os peritos reclamam. “A área técnica fica relegada a um segundo plano, fica esquecida por não ser atividade operacional da polícia. Então a compra de material básico de trabalho é relegada a um segundo plano”, diz o presidente da Associação Fluminense de Medicina Legal, Abrão Oliveira.
O Instituto Médico Legal também faz parte da policia científica. Os legistas examinam, por exemplo, o corpo da vitima de morte violenta e também pessoas agredidas, intoxicadas ou presas dirigindo bêbadas. O IML do Rio fica em um prédio novo. Foi inaugurado há dois anos, custou R$ 35 milhões e está assim: paredes quebradas, reboco caindo, piso com infiltração, portas danificadas. E equipamentos que não funcionam ou não servem.
“O setor de Odontologia tem uma única cadeira odontológica que está quebrada há muito tempo, o que impede a realização de exames como eles deveriam ser feitos, lamenta o deputado federal Alessandro Molon.
No mesmo vídeo feito pela Comissão de Segurança Pública da Câmara, um médico fala de um equipamento inadequado: “Esse é um aparelho para cirurgias ortopédicas. Isso traz um transtorno para fazer o diagnóstico e achar os projéteis de armas de fogo no cadáver”.
O diretor da Polícia Técnico-Científica do Rio, Sérgio Henriques, admite o erro. “Na verdade, ele é mais adequado a um hospital do que ao médico legal. Em vez de você fazer a varredura completa do corpo, você vai fazendo em setores.”
E o que acontece quando o IML nem tem sede? Em Paranavaí (PR), ele funciona em um pronto-socorro. “É evidente que aqui não é um lugar ideal para funcionar um IML, principalmente pelo tamanho do local”, admite o chefe do IML, Luiz Ricci.
O local é a administração e também o lugar para exame de vítimas de agressão ou acidentes. “Não tem como existir aquela privacidade médico-paciente. A gente procura. Claro que as duas pessoas, como estão no setor, são duas pessoas éticas, não vão sair por aí comentando”, diz Luiz Ricci.
O IML ficou dez anos funcionando no local. Logo depois da reportagem, finalmente se mudou para um prédio próprio.
Em Mato Grosso do Sul, é o carro da funerária que remove o corpo da cena do crime. João Ricardo Parreira, da Associação dos Peritos Oficiais de Mato Grosso do Sul, alerta: “Quem garante que no caminho do local do crime o corpo não possa ser violado até o IML? Não está mais sob a custódia da polícia. Está aí a funerária levando o corpo, e nesse trajeto...”
Em Bom Despacho (MG), também não existe rabecão. O tio tem que pagar para o corpo do sobrinho ser removido. “Tem que pagar a remoção do corpo até aqui, são R$ 390. É a derradeira vez que vão tirar dinheiro em um cara, sabe?”, lamenta o tio da vítima.
O IML e o Instituto de Criminalística do Rio passaram por uma inspeção do Tribunal de Contas, que determinou a contratação de empresas especializadas para manutenção dos equipamentos e recomendou um levantamento sobre a falta de funcionários. “Nós fizemos um relatório das deficiências do IML. Tinha sala que não tinha refrigeração, tinha parte de reboco caindo. Tinha sala com infiltração. Várias coisas já foram resolvidas, enumera o diretor da Polícia Técnico-Científica, Sérgio Henriques.
Já há uma licitação para a troca da cadeira de dentista quebrada. Sobre as reclamações da Justiça de Mato Grosso do Sul quanto à falta de equipamentos, o coordenador-geral de Perícias, Alberto Terra, afirma que os novos equipamentos vão ser instalados este mês. Ele diz ainda que a remoção de corpos vai mudar. “Vai se iniciar uma licitação, onde vai ser contratada uma empresa especializada para transporte desses corpos.”
Em Minas, o supervisor da Polícia Técnico-Científica. Diógenes Vieira, informa que o setor vai receber investimentos. “Os equipamentos têm sido comprados e adquiridos, têm sido feito uma distribuição conforme a avaliação dos locais onde prevaleçam a criminalidade dependendo do tipo de criminalidade presente, para que os peritos possam contar com todos os recursos.”
No Paraná, o diretor do Instituto de Criminalística, Antonio Siqueira, aposta em um projeto para resolver a série de problemas: “Há um projeto de reconstrução do Instituto de Criminalística, com contratação de novos peritos criminais para que a gente possa vencer a demanda. Hoje, nós temos crimes novos, como crimes de internet, os crimes de pedofilia, a parte do DNA, que também está aí há alguns anos dentro de um laboratório”.
Essas medidas podem ajudar a diminuir o sofrimento de dona Maristela. No início desta reportagem, você viu que faz um ano que ela espera um exame de DNA de um corpo que pode ser o da filha assassinada. A mulher reclama: “Por que esse resultado está tão enrolado desse jeito?”.
O perito de Curitiba que analisa o material, Emerson Bertassoni, tem a resposta: “Nesse caso, eu ainda estou trabalhando nele e mais 10 ou 12 casos simultâneos”.
Mas dona Maristela suplica: “Onde minha filha estiver, vai receber essa vela acesa”.
Fonte: Fantástico
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